O artigo a seguir é uma introdução ao livro de mesmo título que vou lançar em breve.
Feministas, foodies, hipsters, nômades digitais, esotéricos, gamers....
O mundo não se divide mais por gerações, por grupos de profissões ou torcedores de times. As combinações que emergem em diferentes sociedades são um testemunho de quão vibrante é o Planeta. No Japão existe o grupo dos “sarariman” e dos “cosplay”, enquanto na Alemanha os “punks” circulam pelas cidades. Cada lugar oferece um “zoológico particular.”
Num jantar corriqueiro de uma família de classe média, por exemplo, podemos ter o pai conservador que acabou de elogiar o presidente Bolsonaro, a mãe esotérica animada com seu novo mapa astral, a filha ativista estudante de direito que está lendo Foucault, o filho skatista descolado que compra roupas no brechó do bairro, além de uma fundamentalista evangélica, que passa o dia escutando rádio gospel, servindo à mesa. Abuso um pouco dos estereótipos, mas nem tanto.
A multiplicidade de vozes está presente em todos os ambientes, e foi a partir dessa observação que resolvi escrever este livro, para identificar e mostrar, de maneira leve, não acadêmica, o cenário social diverso que experimentamos todos os dias, no Brasil e no mundo. Alguns tipos são mais globais, como os hipsters, outros estritamente nacionais, como os “bolsominions”. Se muitos são invenções, como a Neomaçonaria, outros são bem reais e conhecidos, como os Esotéricos, e procurei fazer com que todos trouxessem alguma novidade, seja um contexto histórico ou uma frase engraçada.
Eu costumava descrever meus pais como “hippies sem drogas”, e sempre brinquei com essas terminologias, porque ficava observando minha própria família e comparava com o que via fora dela. Aprecio tanto o esforço por um entendimento sério quanto a satirização dos estereótipos, duas atitudes não excludentes, muito pelo contrário, e o que tento fazer aqui é combinar as duas.
Minha proposta é entender o fenômeno de algumas tribos que constituem a sociedade em que vivemos. Com a internet, muitas delas se tornaram multinacionais. Gamers brasileiros jogam com coreanos e noruegueses. Donos de cachorro no Brasil se correspondem e seguem feeds de ucranianos e australianos. Essas tribos fazem parte do nosso padrão de votação, de compras, de consumo de mídia, ocupam territórios específicos, espaço na mídia, entre tantas outras coisas que, ao meu ver, precisam ser analisadas para entender de que forma atrapalham ou ajudam, confundem ou clareiam debates sérios e tão necessários.
Nem todas as tribos são caricatas e também nem todas são sérias. A mistura entre elas é importante, porque é o que vivemos. Algumas não têm os “reclamões” de praxe, outras são meio invisíveis. Há ainda as que tratam de assuntos muito sérios e aquelas cujos personagens ficaram conhecidos por piadas e comportamentos estereotipados. O tom, claro, muda a cada tribo, conforme as reações que me provocam. Por exemplo, eu me irrito quando as conversas e visões de alguns grupos que entendo que prejudiquem a vida em comum. E outra coisa que me incomoda é ver alguém falar sobre assuntos que claramente desconhece, ou tentar conversar com quem insiste em falar, mas que não demonstra nenhum interesse em aprender.
Então, como um comentarista social, tomei a liberdade de utilizar, e até criar, alguns termos mais irônicos, outros mais sérios, ou aparentemente mais vagos. Insisto: este não é um trabalho acadêmico e que pode ser visto até como entretenimento, porém sempre tentando entender as realidades que nos cercam, por isso foquei no Brasil. Queria descrever o que estava à minha volta, mesmo tendo vivido 23 anos fora do país. Uma boa conversa, começa sem sabermos aonde vai parar. E no entanto, causa um incômodo tremendo quando sentimos que não sabemos de algo.
A demonização do “não saber” ou do “não tinha pensado nisso, concordo” tem consequências dramáticas. A defesa passa ser o relativismo. O relativista é aquele que não se compromete com nada. Ele só consegue concordar sob a pressão de um argumento inexorável que o faça ficar muito mal diante de muitas pessoas. Me espanta sempre a energia que pessoas estão dispostas a gastar para sustentar uma posição completamente implausível e que vai contra qualquer senso comum. Apenas para ficarem no seu pedestal. E isso vale tanto para quem é criticado quanto para quem critica. Olhar para essas tribos, é olhar para todas a facetas que formam nossa sociedade, e rir com algumas, nos afastar de outras, querer mudar umas tantas, e finalmente, olharmos no espelho para ver aonde pertencemos mais, mesmo sendo todos uma combinação de várias.
Sobre identidades e diferenças
Quem conhece apenas o seu próprio lado do caso sabe pouco disso. Suas razões podem ser boas e pode ser que ninguém tenha capacidade de refutá-las. Mas se ele é igualmente incapaz de refutar as razões do lado oposto, se nem sabe quais são, ele não tem motivos para preferir uma ou outra opinião... Nem para ouvir as opiniões dos adversários, dos professores deles, apresentando o que declaram e oferecem como refutações. Ele deve ser capaz de ouvi-los e de conhecê-los em sua forma mais plausível e persuasiva.
John Stuart Mill. Sobre a liberdade
No exercício de entender pessoas e tribos, percebi que recolher o máximo de opiniões e pontos de vista de pessoas a minha volta poderia ser útil para muita gente além de meu próprio aprendizado. As discussões de hoje parecem verdadeiros boliches relacionais. É strike depois de strike. Mas quase não há ganhos, e o que se percebe no final é sempre uma perda de tempo. Diante de tantas coisas importantes para construir, acabamos entrando em discussões que não levam a nada, mas eu acredito sinceramente que seja possível construir relacionamentos sólidos se formos capazes de dar ao outro a liberdade que nos permitimos ter. Por outro lado, caminhamos rapidamente para a hipocrisia. A questão central, sempre, é saber com quem estamos dialogando e qual é o objetivo da conversa. Pretendemos chegar a alguma conclusão? Entramos nessa dinâmica apenas para saber mais sobre a outra pessoa? Será que estamos ali para aprender algo?
Conversando com Nelson Brissac, professor de filosofia da PUC São Paulo, concordamos que, diante da enorme diversidade de tribos atual e da velocidade com que as mudanças de hábitos ocorrem, não paramos para tentar entender o outro. Vamos nos fechando, constantemente na defensiva, deixando de apostar nas possibilidades e em nossas percepções, evitando riscos. O agrupamento dos que pensam igual é inevitável, assim como o isolamento em relação a outros grupos. Isso não é novidade para nenhum de nós. Nem eu nem você estamos sozinhos nessa Via Crucis.
Acredito que um futuro melhor deve mirar uma sociedade humanista-secular. Proposta um tanto utópica, jamais atingida, mas possível de ser perseguida em busca do entendimento coletivo e do desenvolvimento com tolerância e compaixão racional. Minha inquietação constante, de onde veio a vontade de escrever este livro, se dá nesse ambiente onde tantas pessoas que tiveram e têm acesso à educação apostam numa dinâmica completamente anti-intelectual, que prejudica as cooperações necessárias para a construção de um mundo mais justo, mais eficiente e de mais entendimento. E para além disso, mais divertido também. Mas aprender, não parece ser divertido para a maioria de nós.
Uma discussão saudável de qualquer ordem só se faz com a premissa de que o mundo não é perfeito e nunca será. Mas como disse uma vez meu amigo Victor Zabrockis, um grande executivo, “a perfeição é impossível. A excelência é o caminho.” Com frequência, a dificuldade em se construir um diálogo plausível e produtivo está na negação em ver o mundo na sua complexidade. Querendo ser simples, mas muitas vezes acabamos sendo simplistas. Nossas decisões, em sua grande maioria, são tomadas porque escolhemos algo “melhor” ou “pior” e não porque seja certo ou errado. Por outro lado, o relativismo de considerar que não há nem bom nem ruim, nem melhor nem pior, e que tudo é uma questão de ponto de vista, ou seja de opinião, leva ao descarte de qualquer orientação moral. Precisamos ser mais propositivos. Sem conflito, não há evolução. O que devemos evitar é o confronto.
O mundo não está acabando
Não podemos ignorar a lista bem extensa das atrocidades contemporâneas, somos melhores que isso e devemos ter a responsabilidade de fazer o esforço para encontrar boas respostas. Mas é fundamental reconhecer que estamos nos aprimorando na maioria dos quesitos de desenvolvimento, principalmente quando olhamos para o médio e o longo prazos. Temos injustiças a combater, e procuro fazer isso todos os dias, mas não reconhecer as áreas nas quais vimos avançando não ajuda a reconhecer nosso desenvolvimento. Mas, infelizmente, o que eu percebo é um desprezo enorme pelo esforço de milhões de pessoas para que o mundo mude para melhor, uma espécie de negacionismo, de recusa em admitir os avanços.
Steven Pinker, autor canadense-americano, professor da Universidade de Harvard, trata com frequência desse assunto, tentando em várias de suas obras tirar o tom de catástrofe, com que muitos se referem ao nosso presente, e o negativismo que impera na mídia. Seu trabalho é inteiramente baseado em dados, com uma preocupação cabal com as fontes, uma pesquisa séria e minuciosa, sempre olhando para o longo prazo. Em seu livro Os anjos bons de nossa natureza, lançado em 2011 e editado no Brasil pela Companhia das Letras em 2017, Pinker defende a tese de que, em geral, a violência nas sociedades humanas diminuiu de forma constante ao longo do tempo, em quase todo o mundo. Ele identifica seis tendências principais e cinco forças históricas desse declínio, sendo a mais importante a revolução humanitária trazida pelo Iluminismo e sua associação à razão.
Dez anos depois, em 2021, lançou Rationality: What It Is, Why It Seems Scarce, Why It Matters (Racionalidade: o que é, por que parece escasso, por que é importante, em tradução livre), que ganhou o prêmio de Livro do Ano pela revista Time e trata da importância da razão no avanço de nossas sociedades. Mostrando que a racionalidade é fator-chave do progresso moral e social, ele tenta resolver com bons argumentos o latente conflito entre o progresso científico e os níveis crescentes de desinformação. Apesar de explicar vários conceitos subjacentes à racionalidade, inclusive dos campos da lógica, teoria da probabilidade, estatística e escolha social, Pinker é constantemente criticado pelos seus colegas, mas sempre num jogo saudável.
Felizmente, quase ninguém acorda todas as manhãs querendo destruir o mundo, se enganar, ou pregar deliberadamente que todo mundo pode tudo. Acredito que, no fundo, esses sejam apenas sintomas de desespero e da insegurança latente de grupos diferentes que navegam em constante conflito. O problema, é que mesmo sendo poucos em quantidade, fazem muito barulho. Todos temos um compasso moral com alguns limites. Porém, quando quase tudo parece ter a mesma validade, quando nos sentimos praticamente obrigados a dar voz a qualquer opinião e a razão é vista como uma espécie de cerceador de liberdade, de intransigência, é fundamental tentar entender nossos contextos, e em que mundo queremos viver.
A plataforma que temos para fazer a mediação entre nossos critérios e objetivos é nossa cultura e a moeda de navegação pelas culturas vai ser a quantidade de conflito entre os critérios e os objetivos. Não vamos chegar a lugar algum sem conviver. Quanto mais conflitos se apresentam dentro de uma cultura diferente, mais esforço vamos ter que fazer. Já numa cultura mais próxima, quanto menos esforço, menos conflito. Por isso às vezes não entendemos como foi tão fácil para tantas pessoas assimilar algo enquanto para outros parece tão complicado. A diferença está na cultura e tentar compreender as outras culturas é fundamental para desenvolver melhores diálogos.
As 21 tribos que selecionei podem e devem ser levadas a serio, mas não são as únicas. Existem muitas outras, maiores e menores no nosso século. Usando algumas nomenclaturas engraçadas e linguagem informal, meu propósito foi entender e criar um canal para aprender. Se não estivermos dispostos a escutar, não podemos aprender a conviver nem a tomar decisões coerentes com um mundo melhor. Além disso, rir de si próprio é essencial. Senão vamos ficar cada um dentro do seu castelo, achando o outro apenas chato, ou ignorante. O que pretendo com este livro é lançar uma ponte para falar desses grupos sem medo, sem pudores infantis, revelar como eles são vistos por outros grupos, levando em consideração as ameaças que alguns deles representam, e a risadas que outros provocam. Tem gente que é, e tem gente que se faz de… A maioria de nós quer melhorar como pessoa, buscamos sempre um pertencimento e os grupos servem para isso. Nos fazem sentir parte de algo maior. Ainda que que possamos criticar muitas coisas em vários grupos, o importante é trazer coisas novas aos nossos radares.
Somos naturalmente inseguros, apesar de haver um preconceito enorme com essa palavra. Demonstramos a todo momento nossas inseguranças. A insegurança é uma ferramenta de sobrevivência. O teste do “falso positivo” se tornou um clássico entre estudiosos de psicologia. Funciona assim: o homem primitivo andava pela savana e escutou um barulho. Poderia ser um leão. Ou o vento que passava pelo capim longo. Na dúvida, o homem sobe numa árvore, com medo, para se proteger. Logo se dá conta de que de fato era apenas o vento. Fazendo isso repetidas vezes para se proteger, se manteve vivo. Isso o ajudou a sobreviver, fazer filhos, e perpetuar a espécie. Veja se você não faz algo análogo num diálogo que parece que vai incomodar. Reagimos preventivamente à qualquer desconforto.
Certa vez, conversando com uma amiga, ela falava das suas aspirações, das suas conquistas, das suas mudanças de emprego e de propósitos na vida. Era uma advogada bem sucedida. Nos conhecíamos há alguns meses. Superconfiante e eloquente sobre suas mudanças, a meditação, a prática de yoga e suas convicções sobre o “encontro” de um novo propósito de vida, eu perguntei: “e quais são suas inseguranças?” Ela pareceu estarrecida, não sabia o que responder, permaneceu uns 15 segundos em silêncio, e finalmente disse, em tom quase infantil: não tinha nenhuma. Falei que poderia listar várias minhas, que tinha muitas, que tentava sempre melhorar quando me deparava com uma reação defensiva, mas que via nossas inseguranças como algo completamente normal. Ela não arredou o pé.
Porque será que não conseguimos admitir nosso lado inseguro? Ou ser humildes ou emocionalmente inteligentes o suficiente para incorporar o que vem de fora, e com critérios melhores que os nossos? Apenas pessoas inseguras ficam tão aborrecidas quando contestadas sobre uma crença, por exemplo. Se realmente acreditassem no que pregam, porque ficariam injuriadas. No estudo “Por que você não perguntou? Subestimando o desconforto de procurar ajuda”, publicado em 2009, Vanessa Bohns e Francis J. Flynn investigam a dificuldade que temos de pedir ajuda, e como isso se torna um problema para a construção de diálogo e resolução de conflitos. Na introdução do artigo, os autores escrevem:
Pedir ajuda pode ser estranho e desconfortável. Mesmo um pedido menor pode convidar à rejeição, expor inadequações e fazer com que quem procura ajuda se sinta tímido, envergonhado e constrangido. Essas barreiras psicológicas à procura de ajuda são bem compreendidas pelas pessoas que precisam de ajuda. Mas, e as pessoas que podem ajudar? Eles estão igualmente cientes do desconforto que muitas vezes desencoraja a busca de ajuda?
Quando algumas pessoas captam rápido meu senso de ceticismo e se incomodam com perguntas diretas, evitam as discussões mais profundas. É comum responderem algum questionamento com “mas é óbvio”. Complemento dizendo que “sendo óbvio é melhor ainda, porque vai ser fácil de se explicar”. Ter a confiança de expor nossas vulnerabilidades é o que nos faz mais fortes. Confiança é o sentimento que rege grande parte dos nossos relacionamentos, seja com pessoas, com instituições, e mesmo com aparelhos. Nós não acreditamos que uma máquina de lavar ou o computador vão funcionar. Nós confiamos. Nós não acreditamos que a Suprema Corte vá fazer o trabalho correto de defender a constituição. Nós confiamos. E assim é com o mundo à nossa volta. E essa confiança pode ser quebrada a qualquer momento, porque temos parâmetros e critérios bastante práticos para fazer esse diagnóstico. Se uma companhia aérea passa a cancelar 90% dos seus vôos, os clientes vão perder a confiança e vão tentar usar outra companhia. Seguramente podemos desfrutar e discordar tanto de parâmetros quanto de critérios, mas para que objetivos comuns sejam alcançados eles têm de ser feitos em linguagem comum e de preferência sem construção ideológica fanática. Algumas tribos desafiam essa lógica, e nos deixam intrigados, desconcertados, sem mesmo indicar um caminho de harmonização. Fica-se então, um vácuo de comunicação. Quando não confiamos que nem nossa capacidade de comunicação vai funcionar, vamos nos afastando, e condenando muitas vezes sem pensar no que estamos causando.
Quase todos os tipos de ideologia vão achar seu espaço no mundo. Quando elas passam a desrespeitar sistemas de boa convivência e se tornam violentas, temos que pensar se essa violência é justificada para tentar impedir algum tipo de violência ainda maior (resistência aos Nazistas por exemplo) ou se ela é uma violência deliberada e argumentada com base apenas em uma vontade de oprimir, impor uma ideia ou o poder à força (invasão do Capitólio nos EUA). Os dois tipos de violência são muitos distintos. O que eu uso como parâmetro é entender se as pessoas com quem eu estou dialogando também vivem nesse mundo parecido com o meu, se têm contas a pagar, utilizam carros, assistem filmes, onde nem tudo que foi feito de errado é possível corrigir, onde cometemos erros e tantas outras coisas. E também se estão dispostas a aplicar a maioria de suas filosofias neste mundo que vivem, ou se é tudo da boca para fora. Eu estou o tempo todo tentando entender se a construção ideológica das pessoas se reflete em algum esforço para construir esse mundo. E tento sempre me perguntar: O que me faria mudar de ideia? Tente o exercício, pode ser divertido. Os capítulos adiante podem ajudar.